quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Rifa-se um coração...


Rifa-se um coração quase novo. 
Um coração idealista. 
Um coração como poucos. 
Um coração à moda antiga. 
Um coração moleque 
que insiste em pregar peças no seu usuário. 

Rifa-se um coração 
que na realidade está um pouco usado, 
meio calejado, 
muito machucado 
e que teima em alimentar sonhos, 
e cultivar ilusões. 
Um pouco inconsequente 
que nunca desiste de acreditar nas pessoas. 
Um leviano e precipitado, 
coração que acha que Tim Maia estava certo 
quando escreveu... 
"não quero dinheiro, 
eu quero amor sincero, 
é isso que eu espero...". 
Um idealista... 
Um verdadeiro sonhador... 

Rifa-se um coração que nunca aprende. 
Que não endurece, 
e mantém sempre viva a esperança de ser feliz, 
sendo simples e natural. 
Um coração insensato 
que comanda o racional 
sendo louco o suficiente 
para se apaixonar. 
Um furioso suicida que vive procurando relações 
e emoções verdadeiras. 

Rifa-se um coração 
que insiste em cometer sempre os mesmos erros. 
Esse coração que erra, briga, se expõe. 
Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões. 
Sai do sério e, 
às vezes revê suas posições 
arrependido de palavras e gestos. 
Este coração tantas vezes incompreendido. 
Tantas vezes provocado. 
Tantas vezes impulsivo. 

Rifa-se este desequilibrado emocional que, 
abre sorrisos tão largos 
que quase dá pra engolir as orelhas, 
mas que também arranca lágrimas 
e faz murchar o rosto. 
Um coração para ser alugado, 
ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes. 
Um órgão abestado 
indicado apenas para quem quer viver intensamente e, 
contra indicado para os que apenas pretendem 
passar pela vida matando o tempo, 
defendendo-se das emoções. 

Rifa-se um coração tão inocente 
que se mostra sem armaduras 
e deixa louco o seu usuário. 
Um coração que quando parar de bater 
ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro 
na hora da prestação de contas: 
" O Senhor poder conferir", 
eu fiz tudo certo, 
só errei quando coloquei sentimento. 
Só fiz bobagens e me dei mal 
quando ouvi este louco coração de criança 
que insiste em não endurecer e, 
se recusa a envelhecer". 

Rifa-se um coração, 
ou mesmo troca-se por outro 
que tenha um pouco mais de juízo. 
Um órgão mais fiel ao seu usuário. 
Um amigo do peito 
que não maltrate tanto o ser que o abriga. 
Um coração que não seja tão inconsequente. 

Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, 
mas que incomoda um bocado. 
Um verdadeiro caçador de aventuras que, 
ainda não foi adotado, 
provavelmente, 
por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais, 
por não querer perder o estilo. 
Oferece-se um coração vadio, 
sem raça, 
sem pedigree. 
Um simples coração humano. 
Um impulsivo membro 
de comportamento até meio ultrapassado. 
Um modelo cheio de defeitos que, 
mesmo estando fora do mercado, 
faz questão de não se modernizar, 
mas vez por outra, 
constrange o corpo que o domina. 
Um velho coração 
que convence seu usuário a publicar seus segredos e, 
a ter a petulância de se aventurar como poeta.

Clarisse Lispector