segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Quarto de Badulaques (XXIII) Por Rubem Alves





Quarto de badulaques (XXIII)

Assim diz a Cecília Meireles: “Foi, desde sempre, o Mar...” Diz a Cecília? O certo não seria “disse”? Pois o poema foi escrito há muito tempo, pertence ao passado... E a Cecília já não vive entre nós. Vive, encantada, como peixe no fundo do Mar... Não. O certo é “diz”. Porque as palavras dos poetas são eternas. São ditas sempre no presente. O tempo não pode com elas. Pode ser que minha memória me falhe – amigos têm estado a me advertir de que estou repetindo coisas que já disse. Os velhos vão ficando de memória fraca – há, inclusive, uma triste e curiosa doença da memória, ela guarda o que foi dito há muitos anos e não guarda o que foi dito alguns segundos antes – sobre isso leiam o livro de Oliver Sachs, O homem que confundiu sua mulher com um chapéu; tudo o que o Oliver Sachs escreve merece ser lido - lembro-me de uma conversa com minha tia Cecília, já velha, era uma conversa sem jeito porque ela ficava repetindo perguntas que havia feito há menos de um minuto, mas sua memória se esquecera não só da pergunta como também da resposta, e era inútil responder porque a mesma pergunta seria feito de novo - até me esqueci do que queria dizer, o que talvez seja uma prova de que meus amigos estão certos – lembrei-me, remexendo a minha memória não me lembro de que a Cecília tenha usado jamais a palavra Deus – muito embora os seus poemas estejam perpassados do sentimento de assombro ante o Grande Mistério que nos cerca. E que metáfora mais bela para o Grande Mistério pode existir que o Mar, que desde sempre foi? Lá está ele, enorme, sem fim, sua superfície azul escondendo os mistérios das profundezas! Silencioso, o Mar não revela os seus segredos. Sem nada saber, só nos resta ver e sonhar. E ficamos a imaginar o que estará lá no fundo! E a nossa imaginação coloca nas profundezas do Mar Sem Fim os seres que nadam em nosso pequeno mar chamado alma! Toda alma é também um mar. Assim são todas as palavras que se dizem sobre Deus. Tolos, os homens acreditam que as palavras que se dizem sobre o Mar Sem Fim revelam o seu mistério. Alguns há, atrevidos, que chegam a dizer que um Peixe Dourado, saído do fundo do mar, lhes contou os segredos... E andam por aí a espalhar as fantasias das suas almas como se fossem a verdade de Mar Sem Fim. (E por falar em Peixe Dourado, você sabe a razão por que os cristãos comem peixe na semana santa? Por favor, não repita a bobagem de que é por que carne de vaca tem sangue, e é como se estivéssemos bebendo o sangue e comendo a carne de Cristo. Pois não foi o próprio Cristo que disse que era necessário que comêssemos sua carne e bebêssemos do seu sangue? Então, a razão deve ser outra... Ou será que você come peixe sem saber por que?... ). Certo está o Alberto Caeiro que diz: “Pensar em Deus é desobedecer a Deus. Porque Deus quis que não o conhecêssemos. Por isso se nos não mostrou. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que viria falar comigo e entraria pela minha porta dentro dizendo-me: Aqui estou!” Com o que concorda Walt Whitman: “Eu sou curioso sobre todas as coisas e não sou curioso acerca de Deus. Não há palavra capaz de dizer quanto eu me sinto em paz perante Deus e a morte.” Emily Dickinson, mulher frágil dotada de asas, tinha um delicado senso do Mistério. Mas, por isso mesmo, por sentir-se assombrada pelo Mistério que nos cerca, desprezava aquilo que sobre ele diziam os religiosos. “Alguns guardam o Domingo indo à Igreja - Eu o guardo ficando em casa - Tendo um Sabiá como cantor - E um Pomar por Santuário. - Alguns guardam o Domingo em vestes brancas - Mas eu só uso minhas Asas - E ao invés do repicar dos sinos na Igreja - Nosso pássaro canta na palmeira./ - É Deus que está pregando, pregador admirável - E o seu sermão é sempre curto. Assim, ao invés de chegar ao Céu, só no final - eu o encontro o tempo todo no quintal.” Mas, afinal de contas, o que é que o Sabiá diz com o seu canto? Nada. Canto de Sabiá não é pra ser compreendido. É pra ser amado. Bem disse o avô Celestino, lá das bandas do Manoel de Barros, que “Deus é assunto delicado de pensar; faz conta um ovo: se apertamos com força parte-se; se não seguramos bem cai.” Tantas coisas loucas os homens pensam sobre Deus. Esses tais se parecem com um Tico-tico que me visita sempre. Pois ele se assenta no parapeito da janela e fica a bicar o vidro. Se lhe perguntássemos da razão por que bica o vidro ele nos responderia: “O que é vidro? Não estou bicando vidro. Bico esse Tico-tico à minha frente, invasor do meu espaço. Mas o danado é esperto. Ele sempre advinha onde vou bicar e se defende. O meu bico sempre bate no bico dele. Ele parece nada sofrer. Mas o meu bico está doendo...” Pobre Tico-tico. Ele não sabe o que são espelhos. Assim são os homens: vêem o seu rosto refletido nas águas do Mar Sem Fim e pensam que a imagem que vêem é o rosto do Senhor do Mar, olhando para eles. Como o Tico-tico, eles não se dão conta de que estão vendo sua própria imagem, refletida. Se você quiser saber como é a alma de uma pessoa, peça-lhe falar sobre o seu Deus. Tudo o que ela disser sobre o seu Deus ela estará falando sobre si mesma. Pessoas vingativas têm um deus vingativo. Como disse Bachelard, para se acreditar no inferno é preciso ter muitas vinganças a realizar. Pessoas que se deixariam comprar por bajulações e favores têm um Deus que se deixa comprar por bajulações e favores... Acham que isso é normal. Pessoas com alma policial têm um Deus carrasco... Pessoas que amam a música têm um Deus que é música... Pessoas que amam jardins têm um Deus jardineiro...

Cliquei o botão do controle remoto da televisão e me vi dentro de um enorme templo, completamente lotado. O programa se chamava, se não me engano, O culto em sua casa. O pregador dizia aos fiéis: “A dúvida é a principal arma do diabo”. Ele não teve coragem de dizer tudo o que essa afirmação piedosa contém. Se ele está no púlpito, lugar sagrado, deve ser bispo ou missionário. Sendo bispo ou missionário, tem acesso privilegiado a Jesus: o Peixe Dourado lhe revelou pessoalmente os mistérios do Mar... Fala diariamente com Jesus. Segue-se que aquilo que ele fala são as palavras de Jesus. Assim, se alguém tem dúvidas sobre o que ele diz, está duvidando de Jesus. Conclusão: quem duvida do que ele diz está enredado nas artimanhas do diabo... Penso o contrário: que as convicções são as principais armas do diabo. As maiores atrocidades da história da humanidade, religiosas e políticas, foram cometidas por pessoas que não tinham dúvidas sobre a verdade dos seus pensamentos. As pessoas que duvidam, ao contrário, são tolerantes. Sabem que o que pensam não é a verdade. Seus pensamentos não passam de “palpites”. Por isso ouvem o que os outros têm a dizer, pois pode ser que a verdade esteja com eles... As religiões ocidentais, o Cristianismo e o Islamismo, se construíram sobre certezas. Sempre tiveram medo da dúvida. Sobre os que duvidavam, colocaram a ameaça das fogueiras ou do inferno. E isso deixou marcas tão profundas nas pessoas religiosas que, ainda hoje, elas têm medo de duvidar. O que significa: elas têm medo de pensar. Contentam-se em repetir o que lhes foi dito. Porque é com a dúvida que o pensamento se inicia. Mas eu não respeitaria um Deus que, havendo nos dado asas nos proibisse de voar. Contra o autoritarismo das certezas só há um remédio: o humor. Como o filme Deus é brasileiro. Deus, cansado de ser Deus, resolveu tirar umas férias. Viajaria por uma outra galáxia. Mas teria de deixar uma outra pessoa no seu lugar, durante a sua ausência. Lá de cima escolheu o homem que mais competência teria para assumir suas funções. Assim, baixou sobre essa terra e pôs-se a procurá-lo. Depois de muitos desencontros, finalmente o encontrou. Sua busca havia chegado ao fim! Poderia iniciar suas férias! Que nada! O dito homem que ele escolhera era ateu. Acontece conosco o que acontece com os galos. Quer o galo cante, quer não cante, o sol sempre aparece... Assim, podemos cantar ou não cantar, desafinar ou inventar um canto dodecafônico, o Sol nem liga. Como diz a Cecília: “Foi, desde sempre, o Mar”, indiferente ao que pensamos...

Rubem Alves


(Correio Popular, 04/05/2003)


Fonte: rubem alves


Meu Comentário:
O Mar...com fim ou sem fim...
Os sábias...
Tudo enfim...
Prestou atenção nessa frase:
"Se voce quiser saber sobre a alma de uma pessoa, peça-lhe falar sobre o seu Deus. Tudo o que ela disser sobre o seu Deus ela estará falando sobre si mesma".
E...não precisa falar mais nada...