quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Evangelho de Lucas (Antroposofia)


No princípio do evangelho de Lucas é narrada uma cena que nos permite ver as secretas ligações existentes entre a alma humana e o mundo divino. O já idoso sacerdote Zacarias encontra-se no templo de Jerusalém oferecendo o sacrifício do incenso, enquanto lá fora no pátio o povo ora devotamente em silêncio. Então, nas volutas da fumaça, aparece a Zacarias a figura de luz de um anjo e lhe anuncia o nascimento de um filho. É o arcanjo Gabriel indicando a eminente encarnação de João Batista.

Essa narrativa singela desvenda um profundo mistério da vida religiosa da humanidade pré-cristã. Os atos cúlticos daquele tempo não eram cerimônias vazias, eram acontecimentos através dos quais os homens entravam em contato com poderes superiores. O ouvir de suas preces era vivenciado por eles como uma revelação do mundo divino. O altar era o lugar onde se recebia a iluminação celeste.

Ao homem da atualidade que, como protestante, rejeita o culto como cerimônia exterior, ou que católico, não mais entende seu significado, tais pensamentos terão que ser estranhos. Mas quem quer entender o Evangelho precisa familiarizar-se com a idéia de que, no passado, religião era um real intercâmbio das almas com Deus. Nos atos cúlticos sempre havia momentos em que a cortina diante do mundo espiritual se abria e o homem em que a cortina diante do mundo espiritual se abria e o homem em oração podia ver os reinos dos céus. Justamente quando sua alma em íntimo anseio seguia as nuvens ascendentes do incenso, muitas vezes vinha-lhe ao encontro a revelação do mundo dos anjos. Em virtude de tais experiências suprassensíveis, o homem sabia que os anjos existem. Especialmente uma das esferas do mundo espiritual podia revelar-se ao homem da época pré-cristã durante o culto: o reino das almas não-nascidas. O pintor Rafael trouxe isso novamente á consciência da humanidade por meio da sua conhecida Madona Sixtina. Por entre nuvens azuis, inúmeras cabeças de crianças olham para a terra, á espera do momento de descer a ela para nascer. O menino Jesus repousando no regaço de sua mãe é tão somente uma delas, já a caminho da encarnação.

A linguagem dessa imagem é hoje tão pouco entendida, porque os homens crêem no dogma segundo o qual Deus cria as almas a partir do nada no momento da concepção. Esse modo de ver, representado tanto pela igreja católica quanto pelas confissões reformistas, absolutamente não é de origem cristã. Nós o encontramos já no filósofo grego, Aristóteles. No entanto, ainda seu mestre, Platão, defendia a opinião da pré-existência da alma, isto é, ele ensinava que antes de nascer no corpo a alma permanece como um ser espiritual nos mundos divinos. A representação de que o homem é imortal depois da fé física só tem sentido se a alma em si mesma for eterna. Mas então ela é eterna não só depois da morte como também antes do nascimento. Nascimento e morte, princípio e fim da vida eterna, por esse modo de ver são apenas etapas no caminho da alma humana eterna em seu desenvolvimento sem limite de tempo. Antes do nascimento, ela permanece nas alturas do mundo espiritual, desce á terra com a concepção, aqui faz as suas experiências felizes e dolorosas e, após a morte, novamente as leva para os reinos a que pertence de eternidade em eternidade. Esta era a opinião óbvia e natural do homem pré-cristão a respeito do ser da alma. Só Aristóteles desligou-se dessa opinião no século IV A.C. e ensinou que a alma tem um princípio mas não tem um fim. Daí, esse ensinamento passou para a igreja cristã, mas nem por isso se tornou mais verdadeiro.

O modo de ver popular, segundo o qual cegonha retira as crianças de uma lagoa onde dormem em cálices de flores, decididamente se aproxima mais da verdade do que o dogma da criação da alma a partir do nada. Pois o povo pelo menos ainda tem a intuição de que as almas não-nascidas repousam no mar do espírito e são trazidas á terra por um gênio, um ser alado.

O evangelho de Lucas logo na primeira página nos mostra que ainda sabe da existência do reino dos não-nascidos. Descreve-nos Gabriel como senso o arcanjo que prepara o caminho do nascimento das almas. Os homens de outrora conheciam esses mistérios, devido á experiências que faziam com o culto, o que o exemplo de Zacarias mostra claramente. Em momentos de graça, o culto os elevava á esfera de inocência das almas não-nascidas. Dessa fonte da juventude, hauriam a força para conduzir sua vida de acordo com o espiritual. Toda religiosidade pré-cristã indicava o caminho para trás, para o paraíso da vida pré-natal.

Diante da imagem do sacerdote pré-cristão, que nas nuvens do incenso via o anjo, o guia das almas não-nascidas, coloquemos, então, o sacerdote cristão que, junto ao altar, com a fumaça do incenso envia sua oração para as alturas divinas. Suas palavras dizem que “nosso primordial no Espírito” queira, abençoando, preencher a fumaça, por estar Cristo vivendo em nosso orar... Assim acontece no Ato de Consagração do Homem. Aqui comunidade cristã pede que sua oração seja ouvida pelo tornar-se manifesta a entidade primordial do homem. Como resposta a essa prece, deve desvendar-se ao orante seu verdadeiro Eu, o Eu superior, cujas raízes estão no espírito. O sacerdote cristão e sua comunidade não estão mais sob a sombra da nuvem dos não-nascidos na mesma medida como dantes. Sobre as nuvens de fumaça deve descer até aos que estão reunidos para o culto o próprio ser de luz do espírito humano eterno. Os presentes pedem que seu próprio ser imortal lhes dê a graça da sua presença.

Na missa católica as palavras correspondentes a esse ponto são: Per intercessionem beati Michaelis archangeli, stanti a dextris altaris incensi, et omnium electorum suorum, incensum istud, dignetur Dominus benedicere ET in odorem suavitates accipere. ( Pela intercessão do santo arcanjo Micael, que está a direita do altar do incenso, e de todos os Teus eleitos, queiras Tu, oh Senhor, abençoar este sacrifício e aceitá-lo em suave odor).

No lugar do arcanjo Gabriel, que ao ofertante do Antigo Testamento se revela como espírito-guia dos não-nascidos, no culto cristão está o arcanjo Micael, o qual luta com o Adversário pela imortalidade da alma humana. A epístola de Judas, do Novo Testamento, diz expressamente, que Micael lutou com Satanás pelo cadáver de Moisés. Assim como Gabriel cuida da entidade humana eterna antes do nascimento, assim Micael vigia pela imortalidade do homem após a morte. Os mencionados trechos mostram claramente que a alma humana está no caminho desde Gabriel para Micael.

O homem pré-cristão buscava a eternidade antes do nascimento, o homem cristão busca-a principalmente após a morte. Como Gabriel em nome de Jeová dava ao homem em oração suas inspirações, hoje Micael, a “face de Cristo”, indica ao homem como pode conquistar a eternidade de sua alma neste mundo mudado. Gabriel anunciava o nascimento de um filho corpóreo, Micael indica os caminhos para um novo nascimento das almas, para que ela possa em seu seio conceber o Filho divino.

Outrora o culto era – como o evangelho de Lucas acentua com ênfase – uma real comunicação do homem com as entidades celestes que dirigem a humanidade. A seriedade inerente ao culto, ao longo do desenvolvimento cristão, os homens deixaram de sentir já há muitos séculos. Na Comunidade de Cristãos a vida cúltica foi renovada, porque reconhece que atualmente temos urgente necessidade de novamente nos comunicar com os poderes divinos. É preciso que os anjos possam outra vez nos guiar, se não quisermos decair para o degrau do homem animalesco.

O altar do Ato de Consagração do Homem foi erigido, para que no nosso meio exista um lugar sagrado onde o homem e Deus possam novamente encontrar-se. O arcanjo Micael, aquele que ajuda o homem na luta contra o espírito do animal que vem do abismo, é o guardião e o inspirador desse sacrifício de consagração. Às almas humanas que ousam novamente bater á porta da eternidade, o ser solar de Micael abençoa com as dádivas das metas divinas, da coragem celestial e da força supra-terrena.

Eduard Lenz 
Tradução Liselotte Sobotta

Extraído do livro Micael  
Comunidade de Cristãos 
Movimento de Renovação Religiosa