sexta-feira, 1 de março de 2013

O despertar do Si




O que é que, a certa altura, muda a situação interior do indivíduo que se encontra na condição que descrevemos, de sofrimentos e crise, de doença psíquica, e que produz a cura?

O que é que repentinamente faz cessar o conflito, que põe fim à tensão inconsciente entre as duas forças, a do passado e a do futuro, a da personalidade e a do Si, e conduz ao amadurecimento e à iluminação?

De fato, sem que aparentemente nada tivesse feito prever, de modo repentino e inesperado todas as angústias cessam, todos os conflitos desaparecem, todas as resistências são derrubadas: irrompe de súbito na consciência ordinária uma luz, uma chama, uma presença que subverte tudo, que torna tudo novo, maravilhoso, claro e, antes de mais nada, "reconciliado".

É o despertar da consciência do nosso verdadeiro Eu, do Si.

A pergunta, no entanto, permanece: que acontecimento interior levou à solução?

Foi porque prevaleceu a vontade do Si sobre a do eu inferior?

Foi devido à compreensão do equívoco por parte do aspirante espiritual, da inutilidade da luta?

Foi, como dissemos no capítulo anterior, a rendição, o abandono inapelável e a abertura à consciência superior "superconsciente"?

Na realidade, todos estes três fatores estão presentes e contribuem para a cura e a abertura, mas há um "quarto" fator, que poderíamos chamar técnico, decisivo, e que traz para a superfície a afluência repentina da nova consciência, ou melhor dizendo, o nascimento da nova consciência.

Este quarto fator é o contato efetivo entre as energias da personalidade, que venceram o sofrimento por via da elevação e da sublimação produzindo uma vibração mais alta, as energias espirituais do Si.

Este contato se verifica também, a nível físico, em certo ponto do cérebro, situado entre a glândula pineal (onde se diz que o Si está localizado no corpo físico) e a hipófise (centro ajna, onde se condensam as energias da personalidade integrada), ponto este chamado "tálamo".

Tal contato provoca uma centelha, uma espécie de "curto-circuito", que é o sinal revelador da fusão das duas energias, que produz o nascimento do "Filho", isto é, da consciência. As "bodas celestiais" entre o Pai-Espírito e a Personalidade-Mãe foram consumadas, e o produto é o nascimento da consciência.

Mesmo em sentido psicológico, no que diz respeito à neurose, fala-se da "tomada de consciência" que provoca repentinamente uma catarse no paciente e, portanto, a cura, como de um "curto-circuito" entre os dois pólos da consciência, isto é, o inconsciente e o consciente.

Tal curto-circuito produz o sentimento de uma iluminação repentina, semelhante a uma revelação.

De fato, segundo os inúmeros testemunhos daqueles que passaram pela experiência do "despertar", o sintoma mais comum é a instantaneidade, o sintoma mais comum é a instantaneidade, o seu caráter repentino e inesperado, semelhante ao de um relâmpago que, subitamente, ilumina a paisagem antes imersa na treva.

É como se alguém, repentinamente, se "lembrasse" de alguma coisa esquecida, reconhecesse subitamente um lugar, uma pessoa, após muito tempo...

É como se despertasse de um longo sono repleto de sonhos que havia julgado verdadeiros, einesperadamente acordasse e percebesse que a verdade é outra.

No entanto, o mais maravilhoso de tudo, aquilo que proporciona um sentimento profundo, quase uma surpresa, é a sensação de auto-reconhecimento.

Nesse preciso instante, somente, é que o indivíduo sente-se ele próprio, se auto-reconhece, se reencontra, lembra-se de si mesmo, como alguém que tivesse perdido a memória e de repente a recobrasse.

As escolas esotéricas vêm, através dos tempos, referindo-se à doutrina do despertar, levando sempre em consideração que o homem vive num estado de inconsciência e sono do qual, um dia, deverá acordar para se auto- reconhecer.

A primeira sensação que se tem no instante do auto-reconhecimento, como já disse anteriormente, é a de surpresa e perplexidade por tanta luta e sofrimento passado para se chegar àquilo que, naquele momento, se nos afigura a coisa mais simples, fácil e natural do mundo.

Quase todos os que passaram por esta experiência dizem a si mesmos:
"Esta realidade estava tão próxima e era tão simples e no entanto eu não sabia, nem me dava conta disso. Por quê? "

Ou então:
"Eu já era esta consciência, esta presença, esta alegria, e me obstinava em procurá-la noutra parte, em querer construí-la algures".

De fato, naquele momento, o indivíduo "desperto" prova a verdade proclamada pelo esoterismo com as palavras: "Devemos nos tornar aquilo que já somos".

Todavia, somente aqueles que já experimentaram isto podem dizer da maravilhosa e indescritível sensação que vem ao espírito quando nos tornamos o que somos, quando nos fazemos repentinamente conscientes do verdadeiro Eu, da profunda autenticidade do próprio ser, da totalidade, da unidade, da integração que daí decorrem.

O homem se sente enfim "realizado" e livre, plenamente livre, sendo esta luminosa e alegre liberdade o sinal divino para o homem.

Poderíamos indagar a essa altura:
"Que conseqüências tem para a vida do homem uma tão alta experiência? É ela duradoura e estável ou não passa de uma abertura momentânea que depois desaparece?"

A experiência do despertar não se dá sem produzir profundas e efetivas mudanças no homem, mas é preciso distinguir entre o "verdadeiro" despertar e as experiências místicas.



A diferença entre a experiência mística e o "despertar" ou "iluminação" consiste em que, na primeira, o contato com a Alma, com o Si, se dá por uma elevação "temporária" do corpo emotivo, por um impulso de amor em direção à Divindade ou pela fervorosa aspiração e devoção votadas a um Mestre.

Tal elevação produz uma sublimação das energias que compõem o corpo emotivo e uma aceleração de suas vibrações.

O nosso veículo pessoal é todo ele subdividido em sete subplanos, ou gamas vibratórias que exprimem qualidades, faculdades e inclinações que se tomam cada vez mais puras e refinadas à medida que se passa para os sub-planos mais altos do corpo emotivo, cuja vibração atrai a vibração do Si, até que se produz um contato com o aspecto correspondente, isto é, o do Amor.

Ao contrário, quando se trata da experiência que chamamos "despertar" ou "iluminação", são as vibrações de todos os três veículos que se elevam, sendo total o contato com o Si, isto é, com todos os seus aspectos:

Vontade, Amor e Inteligência Criativa.

O que sobrevém não é, na verdade, apenas, um sentimento de exaltação, de êxtase, de amor e devoção na experiência, como acontece no místico mas, como já dissemos, um "auto-reconhecimento", um alargamento de consciência, como também a visão e a compreensão de verdades cognoscitivas e metafísicas.

O sentido da vida torna-se claro, as leis universais são compreendidas e todas as dúvidas intelectuais desaparecem em favor de um maravilhoso sentimento de justiça, de harmonia e ordem.

Diz Allan Watts: "Ao indivíduo que passou por uma iluminação desse tipo, sobrevém a certeza vivida e arrebatadora do universo exatamente como ele é nesse momento, tanto em sua totalidade como em cada uma de suas partes, o universo como algo inteiramente justo, que prescinde de explicações e de justificações além do que ele simplesmente é". (Do ensaio Este é o Todo, p. 9.)

Além disso, uma outra diferença fundamental e bastante importante entre a experiência mística e o verdadeiro despertar é o fato de que a primeira não provoca uma mudança substancial na consciência do indivíduo que passou por ela, já que ele retorna à sua condição habitual, não conservando dela mais do que a lembrança, enquanto o segundo produz uma verdadeira transformação interior no homem, uma transformação total, uma reorientação completa, a ponto de, para descrevê-lo, se lançar mão de termos como "conversão", "segundo nascimento", ou a palavra grega "metanóia" (revira-volta).

Realmente, o homem desperto não é mais o de antes, pois o foco da sua consciência mudou.

Antes, o centro era o eu pessoal; depois, o Eu espiritual e autêntico.

Portanto, poderíamos dizer que antes "as coisas eram vistas de baixo" e agora são vistas do alto, a sua perspectiva mudou comple- tamente, ampliou-se, não é mais limitada pela identificação com o instrumento inferior.

Por isso, a quem indagasse: "Como reconhecer se passei por um efetivo despertar ou somente gozei de um momento de elevação, por maravilhoso que tenha sido?", se poderia responder: "O critério para reconhecer a autenticidade e a realidade da experiência do despertar é, antes de mais nada, a certeza interior, e em seguida a mudança do estado de consciência".

Se não ocorre mudança, isso significa que não houve um verdadeiro despertar.

De acordo com as doutrinas Zen, o ponto mais alto é o "satori", que significa iluminação, mas o Mestre Zen recomenda ao discípulo não confundir o falso satori com o verdadeiro, pois este último deve acarretar "uma transformação de caráter" e uma "orientação produtiva" para ávida, e não um estado de evasão da realidade ou de exaltação emotiva que se basta em si mesma.

Quanto à saúde física e psíquica, o despertar da verdadeira consciência opera uma cura integral pelo simples fato de que todos os conflitos, todas as desarmonias, todas as inibições e congestões desaparecem.

O indivíduo naquele momento, está "perfeitamente alinhado", isto é, todas as suas energias, pessoais e espirituais, vibram em sintonia, e ele alcança um estado de total harmonia entre "vida e forma", razão por que a doença, quer seja física ou psíquica, provocada pela desarmonia e o conflito, não mais se sustenta.

É lógico que se a doença havia-se somatizado a ponto de produzir lesões orgânicas, ela não vai ser curada de uma hora para outra; mas a partir daquele momento ela começa a regenerar, causando uma mudança imprevista nos sintomas e em suas manifestações, a ponto de surpreender os próprios médicos.

Há, na história da medicina, inúmeros casos como esse, de resolução repentina de doenças julgadas incuráveis ou mortais, deixando perplexos os cientistas mas demonstrando a força saneadora existente em nós mesmos, em nosso verdadeiro Si, a qual poderá entrar em ação se nos abrimos a ela.

Nas neuroses, como já mencionamos anteriormente, a revelação da "nova" consciência produz uma "catarse", isto é, primeiramente uma revivência emotiva da experiência traumatizante, de cunho dramático, ou uma vivida tomada de consciência do conflito, com participação integral de todo o ser, e em seguida o superamento libertador, do qual emerge triunfante o Eu verdadeiro do paciente, como que renascido, solto das ligações, das resistências, dos recalques e repleto de novas e frescas energias.

Poderíamos citar a este respeito, para entender melhor as possíveis manifestações dessa harmonia interior entre a personalidade e o Si espiritual, algumas características observadas e estudadas por Maslow nos indivíduos que conheceram as "peak experiences", isto é, os momentos de total auto-realização.

1. Unificação: o indivíduo se sente integrado, unificado, "inteiro". Sente- se "uno"

2. Superação do isolamento: a pessoa, ao tornar-se pura e simplesmente o que ela é, se vê mais capaz de fundir-se com o mundo e com o que antes era o não-si. Isso significa que "a máxima ipseidade constitui, de per si e simultaneamente, um transcender-se a si mesmo..."

3. Máximo regime: aquele que passou por uma "peak experience" sente- se na sua máxima potencialidade, empregando todas as suas faculdades da melhor maneira e da forma a mais completa. Em outras palavras, "exprime-se a si mesmo".

4. Espontaneidade: há nele um estado de graça, de alegria, que se exprime também pela facilidade, desnecessidade de esforço, humor, despreo- cupação, segurança etc.

5. Auto determinação: o indivíduo que se auto-realiza sente-se como "centro ativo, responsável, criativo da própria vida e das suas próprias ativi- dades. Sente-se autodeterminado, dono de si mesmo... dotado de livre-arbítrio, responsável, digno de confiança etc".

6. Liberdade: sente-se extremamente livre de bloqueios, inibições, temores, dúvidas, reservas etc.

7. Inocência: é ingênuo, honesto, cândido, semelhante a uma criança, privado de defesas, mais natural, simples, sincero, imediato, relaxado etc.

8. Criatividade: há no indivíduo uma maior criatividade espontânea, isenta de motivações, isenta de esforço, que flui livremente sem uma finalidade precisa.

9. Poesia, musicalidade: a expressão e a comunicação, nas "peak experiences", tendem a ser poéticas, míticas, rapsódicas, musicais...

Estas são apenas algumas das manifestações mais comuns que se verificam nos indivíduos que passaram por uma experiência de auto-realização que, na realidade, é contato, mesmo que momentâneo e parcial, com o verdadeiro Si, demonstrando-nos o estado de harmonia, de bem-estar, de inte- gridade, decorrente do fato de sermos enfim "o que somos" e nos revelando que a verdadeira natureza do homem é divina.

Agora, poderíamos indagar: "Essa experiência tão maravilhosa,regeneradora, determinante do 'despertar' põe fim aos sofrimentos do homem e representa o ápice de sua trajetória evolutiva?"

A resposta é: "não".

Ela é somente um início, um "novo nascimento", como dissemos, uma nova orientação consciente e lúcida para a consciência, mas há ainda um longo trabalho a ser efetuado para tornar estável tal contato, purificando, transmutando e sublimando todas as energias da personalidade que até então haviam se elevado apenas momentaneamente, permitindo assim o vislumbre e o brilho da centelha da verdadeira consciência.

É preciso estar muito atento e não se deixar levar por um estado de perigosa euforia, que faz com que as coisas sejam vistas como fáceis e "já resolvidas".

O indivíduo "desperto" percebe, então, que "a parte inferior da sua personalidade fora apenas momentaneamente paralisada, não eliminada ou transformada.

O 'Velho Adão' ressurge com seus hábitos, suas tendências,suas paixões e o homem compreende então que, para possuir duradouramente a luz espiritual, ele deve realizar um longo, paciente e complexo trabalho de purificação e transmutação.

"Deve empreender uma descida às profundezas da própria natureza para conhecê-la, sublimá-la e regenerá-la". (Assagioli: O despertar da Alma)

Além disso, o poderoso afluxo de luz e de energia provocado pela abertura de consciência em direção ao Si pode causar alguns inconvenientes e distúrbios nos veículos do aspirante, os quais seria bom conhecer para compreender a sua natureza e superá-los.

Portanto, o despertar é uma mutação interior que marca o início de uma nova fase evolutiva para o indivíduo, fase durante a qual ele pode acelerar o seu amadurecimento, tendo enfim consciência de si mesmo e de sua meta, mas também de que esta não é alcançada sem conflitos, crises, provações e ulteriores iluminações e aberturas a serem conquistadas.




Fonte:
Angela Maria La Sala Bata
Medicina Psico Espiritual
Tradução de Pier Luigi Cabra